sábado, 25 de fevereiro de 2012

Sempre nas mãos de Deus

A oração de Jesus na iminência da morte foi o tema de reflexão proposta pelo Papa na manhã de quarta-feira 15 de Fevereiro, aos fiéis presentes na audiência geral.
Queridos irmãos e irmãs

Na nossa escola de oração, na quarta-feira passada falei sobre a oração de Jesus na Cruz, tirada do Salmo 22: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?". Agora, gostaria de continuar a meditação sobre a oração de Jesus na Cruz, na iminência da morte, hoje pretendo reflectir sobre a narração que encontramos no Evangelho de são Lucas. O evangelista transmitiu-nos três palavras de Jesus na Cruz, duas das quais - e primeira e a terceira - são preces dirigidas explicitamente ao Pai. A segunda, ao contrário, é constituída pela promessa feita ao chamado bom ladrão, crucificado com Ele; de facto, respondendo ao pedido do ladrão, Jesus tranquiliza-o: "Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso" (Lc 23, 43). Assim, na narração de Lucas estão entrelaçadas sugestivamente as duas orações que Jesus em agonia dirige ao Pai e o acolhimento da súplica que lhe é dirigida pelo pecador arrependido. Jesus invoca o Pai e ao mesmo tempo ouve o pedido deste homem que muitas vezes é chamado latro poenitens, "o ladrão arrependido".
Meditemos sobre estas três preces de Jesus. Ele pronuncia a primeira imediatamente depois de ter sido pregado na Cruz, enquanto os soldados dividem entre si as suas vestes, como triste recompensa do seu serviço. Num certo sentido, é com este gesto que se encerra o processo da crucifixão. São Lucas escreve: "Quando chegaram ao lugar chamado Calvário crucificaram-no, a Ele e aos malfeitores, um à direita e outro à esquerda. Jesus dizia: "Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem!". Depois, lançaram a sorte para dividirem as suas vestes" (23, 33-34). A primeira oração que Jesus dirige ao Pai é de intercessão: pede o perdão para os seus algozes. Com isto, Jesus cumpre pessoalmente quanto tinha ensinado no sermão da montanha, quando disse: "Digo-vos, porém, a vós que me escutais: amai os vossos inimigos, fazei o bem a quantos vos odeiam" (Lc 6, 27), e também tinha prometido àqueles que sabem perdoar: "A vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo" (v. 35). Agora, da Cruz, Ele não só perdoa os seus algozes, mas dirige-se directamente ao Pai, intercedendo a favor deles.
Esta atitude de Jesus encontra um "imitador" comovedor na narração da lapidação de santo Estêvão, primeiro mártir. Com efeito Estêvão, já próximo do fim, "de joelhos, bradou com voz forte: "Senhor, não lhes atribuas este pecado". Dito isto, adormeceu" (Act 7, 60): esta foi a sua última palavra. É significativo o confronto entre a prece de perdão de Jesus e a do protomártir. Santo Estêvão dirige-se ao Senhor ressuscitado e pede que a sua morte - um gesto definido claramente com a expressão "este pecado" - não seja atribuída aos seus lapidadores. Na Cruz, Jesus dirige-se ao Pai e não pede só o perdão para os seus crucificadores, mas oferece também uma leitura de quanto está a acontecer. Com efeito, segundo as suas palavras, os homens que O crucificam "não sabem o que fazem" (Lc 23, 34). Ou seja, Ele põe a ignorância, o "não saber", como motivo do pedido de perdão ao Pai, porque esta ignorância deixa aberto o caminho para a conversão, como de resto acontece nas palavras que pronunciará o centurião quando Jesus morre: "Verdadeiramente, este homem era justo" (v. 47), era o Filho de Deus. "Permanece uma consolação para todos os tempos e para todos os homens o facto de que o Senhor, quer a respeito daqueles que realmente não sabiam - os algozes - quer de quantos sabiam e O condenaram, põe a ignorância como motivo do pedido de perdão - vê-o como porta que pode abrir-nos à conversão" (Jesus de Nazaré, II, 233).
A segunda palavra de Jesus na Cruz, citada por são Lucas, é de esperança, é a resposta ao pedido de um dos dois homens crucificados com Ele. Diante de Jesus, o bom ladrão toma consciência de si mesmo e arrepende-se, compreende que está diante do Filho de Deus, que torna visível a Face do próprio Deus, e pede-lhe: "Jesus, lembra-te de mim quando estiveres no teu reino" (v. 42). A resposta do Senhor a este pedido vai muito além da súplica; com efeito, Ele diz: "Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso" (v. 43). Jesus está consciente de entrar directamente em comunhão com o Pai e de reabrir ao homem o caminho para o Paraíso de Deus. Assim mediante esta resposta dá a esperança firme de que a bondade de Deus pode tocar-nos até no último instante da vida, e a prece sincera, mesmo após uma vida errada, encontra os braços abertos do Pai bom, que espera a vinda do filho.
Mas meditemos sobre as últimas palavras de Jesus moribundo. O evangelista narra: "Por volta do meio-dia, as trevas cobriram toda a terra, até às três horas da tarde. O sol eclipsou-se e o véu do templo rasgou-se ao meio. Dando um forte grito, Jesus exclamou: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!". Dito isto, expirou" (vv. 44-46). Alguns aspectos desta narração são diferentes em relação ao contexto oferecido em Marcos e Mateus. As três horas de escuridão em Marcos não são descritas, enquanto em Mateus são ligadas a uma série de vários acontecimentos apocalípticos, como o tremor de terra, a abertura dos sepulcros e os mortos que ressuscitam (cf. Mt 27, 51-53). Em Lucas, as horas de escuridão têm a sua causa no eclipsar-se do sol, mas nesse momento verifica-se inclusive a laceração do véu do templo. Deste modo, a narração lucana apresenta dois sinais, de certo modo paralelos, no céu e no templo. O céu perde a sua luz, a terra desaba, enquanto no templo, lugar da presença de Deus, se rasga o véu que protege o santuário. A morte de Jesus caracteriza-se explicitamente como evento cósmico e litúrgico; em especial, marca o início de um novo culto, num templo não construído por homens, porque é o Corpo do próprio Jesus, morto e ressuscitado, que congrega os povos, unindo-os no Sacramento do seu Corpo e Sangue.
A prece de Jesus neste momento de sofrimento - "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" - é um brado forte de confiança extrema e total em Deus. Tal oração expressa a plena consciência de não estar abandonado. A invocação inicial - "Pai" - recorda a sua primeira declaração, quando tinha doze anos. Então, permaneceu por três dias no templo de Jerusalém, cujo véu agora se rasgou. E quando os pais lhe manifestaram a sua preocupação, respondeu: "Por que me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?" (Lc 2, 49). Do início ao fim, o que determina completamente o sentir de Jesus, a sua palavra, o seu gesto, é a relação singular com o Pai. Na Cruz, Ele vive plenamente no amor esta sua relação filial com Deus, que anima a sua oração.
As palavras proferidas por Jesus, após a invocação: "Pai", retomam uma expressão do Salmo 31: "Nas tuas mãos entrego o meu espírito" (Sl 31, 6). Estas palavras não são uma simples citação, mas manifestam ao contrário uma decisão firme: Jesus "entrega-se" ao Pai num gesto de abandono total. Estas palavras são uma prece de "entrega", cheia de confiança no amor de Deus. A oração de Jesus diante da morte é dramática, como o é para cada homem, mas ao mesmo tempo está imbuída da calma profunda que nasce da confiança no Pai e da vontade de se entregar totalmente a Ele. No Getsémani, quando começou a luta final e a oração mais intensa e estava para ser "entre nas mãos dos homens" (Lc 9, 44), o seu suor tornou-se "como gotas de sangue que caíam na terra" (Lc 22, 44). Mas o seu Coração obedecia totalmente à vontade do Pai, e por isso "um anjo do céu" veio confortá-lo (cf. Lc 22, 42-43). Ora, nos últimos instantes, Jesus dirige-se ao Pai, dizendo quais são realmente as mãos às quais Ele entrega toda a sua existência. Antes de partir em viagem rumo a Jerusalém, Jesus tinha insistido com os seus discípulos: "Prestai bem atenção ao que vou dizer-vos: o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens" (Lc 9, 44). Agora que a vida está para O deixar, Ele sela na prece a última decisão: Jesus deixou-se entregar "nas mãos dos homens", mas é nas mãos do Pai que entrega o seu espírito; assim - como diz o evangelista João - tudo se cumpre, o supremo gesto de amor é levado até ao fim, ao limite e mais além.
Caros irmãos e irmãs, as palavras de Jesus na Cruz nos últimos instantes da sua vida terrena oferecem indicações exigentes para a nossa oração, mas abrem-na inclusive a uma confiança segura e a uma esperança firme. Jesus, que pede ao Pai para perdoar quantos O crucificam, convida-nos ao difícil gesto de rezar também por aqueles que são injustos para connosco, que nos prejudicaram, sabendo perdoar sempre, a fim de que a luz de Deus possa iluminar o seu coração; e convida-nos a viver, na nossa oração, a mesma atitude de misericórdia e de amor que Deus tem por nós: "Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido", recitamos diariamente no "Pai-Nosso". Ao mesmo tempo Jesus, que na hora extrema da morte se confia totalmente nas mãos de Deus Pai, comunica-nos a certeza de que, por mais duras que sejam as provas, difíceis os problemas, pesado o sofrimento, nunca estaremos fora das mãos de Deus, das mãos que nos criaram, que nos sustêm e que nos acompanham no caminho da existência, porque guiadas por um amor infinito e fiel. Obrigado!

Por fim, o Papa ao saudar os fiéis em várias línguas disse em português.

Saúdo todos os peregrinos de língua portuguesa, nomeadamente os fiéis brasileiros vindos de Curitiba, a quem exorto a aprender do exemplo da oração de Jesus, uma oração cheia de serena confiança e firme esperança no Pai do Céu, que nunca nos abandona. Que as Suas Bênçãos sempre vos acompanhem! Ide em paz! 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE PAPA BENTO XVI PARA A QUARESMA DE 2012





MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
PAPA BENTO XVI
PARA A QUARESMA DE 2012

A Quaresma oferece-nos a oportunidade de reflectir mais uma vez sobre o cerne da vida cristã: o amor. Com efeito este é um tempo propício para renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e a partilha, pelo silêncio e o jejum, com a esperança de viver a alegria pascal.
Desejo, este ano, propor alguns pensamentos inspirados num breve texto bíblico tirado daCarta aos Hebreus: «Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras» (10, 24). Esta frase aparece inserida numa passagem onde o escritor sagrado exorta a ter confiança em Jesus Cristo como Sumo Sacerdote, que nos obteve o perdão e o acesso a Deus. O fruto do acolhimento de Cristo é uma vida edificada segundo as três virtudes teologais: trata-se de nos aproximarmos do Senhor «com um coração sincero, com a plena segurança da fé» (v. 22), de conservarmos firmemente «a profissão da nossaesperança» (v. 23), numa solicitude constante por praticar, juntamente com os irmãos, «oamor e as boas obras» (v. 24). Na passagem em questão afirma-se também que é importante, para apoiar esta conduta evangélica, participar nos encontros litúrgicos e na oração da comunidade, com os olhos fixos na meta escatológica: a plena comunhão em Deus (v. 25). Detenho-me no versículo 24, que, em poucas palavras, oferece um ensinamento precioso e sempre actual sobre três aspectos da vida cristã: prestar atenção ao outro, a reciprocidade e a santidade pessoal.
1. «Prestemos atenção»: a responsabilidade pelo irmão.
O primeiro elemento é o convite a «prestar atenção»: o verbo grego usado é katanoein, que significa observar bem, estar atento, olhar conscienciosamente, dar-se conta de uma realidade. Encontramo-lo no Evangelho, quando Jesus convida os discípulos a «observar» as aves do céu, que não se preocupam com o alimento e todavia são objecto de solícita e cuidadosa Providência divina (cf. Lc 12, 24), e a «dar-se conta» da trave que têm na própria vista antes de reparar no argueiro que está na vista do irmão (cf. Lc 6, 41). Encontramos o referido verbo também noutro trecho da mesma Carta aos Hebreus, quando convida a «considerar Jesus» (3, 1) como o Apóstolo e o Sumo Sacerdote da nossa fé. Por conseguinte o verbo, que aparece na abertura da nossa exortação, convida a fixar o olhar no outro, a começar por Jesus, e a estar atentos uns aos outros, a não se mostrar alheio e indiferente ao destino dos irmãos. Mas, com frequência, prevalece a atitude contrária: a indiferença, o desinteresse, que nascem do egoísmo, mascarado por uma aparência de respeito pela «esfera privada». Também hoje ressoa, com vigor, a voz do Senhor que chama cada um de nós a cuidar do outro. Também hoje Deus nos pede para sermos o «guarda» dos nossos irmãos (cf. Gn 4, 9), para estabelecermos relações caracterizadas por recíproca solicitude, pela atenção ao bem do outro e a todo o seu bem. O grande mandamento do amor ao próximo exige e incita a consciência a sentir-se responsável por quem, como eu, é criatura e filho de Deus: o facto de sermos irmãos em humanidade e, em muitos casos, também na fé deve levar-nos a ver no outro um verdadeiro alter ego, infinitamente amado pelo Senhor. Se cultivarmos este olhar de fraternidade, brotarão naturalmente do nosso coração a solidariedade, a justiça, bem como a misericórdia e a compaixão. O Servo de Deus Paulo VI afirmava que o mundo actual sofre sobretudo de falta de fraternidade: «O mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de fraternidade entre os homens e entre os povos, do que na esterilização ou no monopólio, que alguns fazem, dos recursos do universo» (Carta enc. Populorum progressio, 66).
A atenção ao outro inclui que se deseje, para ele ou para ela, o bem sob todos os seus aspectos: físico, moral e espiritual. Parece que a cultura contemporânea perdeu o sentido do bem e do mal, sendo necessário reafirmar com vigor que o bem existe e vence, porque Deus é «bom e faz o bem» (Sal 119/118, 68). O bem é aquilo que suscita, protege e promove a vida, a fraternidade e a comunhão. Assim a responsabilidade pelo próximo significa querer e favorecer o bem do outro, desejando que também ele se abra à lógica do bem; interessar-se pelo irmão quer dizer abrir os olhos às suas necessidades. A Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração endurecido por uma espécie de «anestesia espiritual», que nos torna cegos aos sofrimentos alheios. O evangelista Lucas narra duas parábolas de Jesus, nas quais são indicados dois exemplos desta situação que se pode criar no coração do homem. Na parábola do bom Samaritano, o sacerdote e o levita, com indiferença, «passam ao largo» do homem assaltado e espancado pelos salteadores (cf. Lc 10, 30-32), e, na do rico avarento, um homem saciado de bens não se dá conta da condição do pobre Lázaro que morre de fome à sua porta (cf. Lc 16, 19). Em ambos os casos, deparamo-nos com o contrário de «prestar atenção», de olhar com amor e compaixão. O que é que impede este olhar feito de humanidade e de carinho pelo irmão? Com frequência, é a riqueza material e a saciedade, mas pode ser também o antepor a tudo os nossos interesses e preocupações próprias. Sempre devemos ser capazes de «ter misericórdia» por quem sofre; o nosso coração nunca deve estar tão absorvido pelas nossas coisas e problemas que fique surdo ao brado do pobre. Diversamente, a humildade de coração e a experiência pessoal do sofrimento podem, precisamente, revelar-se fonte de um despertar interior para a compaixão e a empatia: «O justo conhece a causa dos pobres, porém o ímpio não o compreende» (Prov29, 7). Deste modo entende-se a bem-aventurança «dos que choram» (Mt 5, 4), isto é, de quantos são capazes de sair de si mesmos porque se comoveram com o sofrimento alheio. O encontro com o outro e a abertura do coração às suas necessidades são ocasião de salvação e de bem-aventurança.
O facto de «prestar atenção» ao irmão inclui, igualmente, a solicitude pelo seu bem espiritual. E aqui desejo recordar um aspecto da vida cristã que me parece esquecido: a correcção fraterna, tendo em vista a salvação eterna. De forma geral, hoje é-se muito sensível ao tema do cuidado e do amor que visa o bem físico e material dos outros, mas quase não se fala da responsabilidade espiritual pelos irmãos. Na Igreja dos primeiros tempos não era assim, como não o é nas comunidades verdadeiramente maduras na fé, nas quais se tem a peito não só a saúde corporal do irmão, mas também a da sua alma tendo em vista o seu destino derradeiro. Lemos na Sagrada Escritura: «Repreende o sábio e ele te amará. Dá conselhos ao sábio e ele tornar-se-á ainda mais sábio, ensina o justo e ele aumentará o seu saber» (Prov 9, 8-9). O próprio Cristo manda repreender o irmão que cometeu um pecado (cf. Mt 18, 15). O verbo usado para exprimir a correcção fraterna –elenchein – é o mesmo que indica a missão profética, própria dos cristãos, de denunciar uma geração que se faz condescendente com o mal (cf. Ef 5, 11). A tradição da Igreja enumera entre as obras espirituais de misericórdia a de «corrigir os que erram». É importante recuperar esta dimensão do amor cristão. Não devemos ficar calados diante do mal. Penso aqui na atitude daqueles cristãos que preferem, por respeito humano ou mera comodidade, adequar-se à mentalidade comum em vez de alertar os próprios irmãos contra modos de pensar e agir que contradizem a verdade e não seguem o caminho do bem. Entretanto a advertência cristã nunca há-de ser animada por espírito de condenação ou censura; é sempre movida pelo amor e a misericórdia e brota duma verdadeira solicitude pelo bem do irmão. Diz o apóstolo Paulo: «Se porventura um homem for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão, e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado» (Gl 6, 1). Neste nosso mundo impregnado de individualismo, é necessário redescobrir a importância da correcção fraterna, para caminharmos juntos para a santidade. É que «sete vezes cai o justo» (Prov 24, 16) – diz a Escritura –, e todos nós somos frágeis e imperfeitos (cf. 1 Jo 1, 8). Por isso, é um grande serviço ajudar, e deixar-se ajudar, a ler com verdade dentro de si mesmo, para melhorar a própria vida e seguir mais rectamente o caminho do Senhor. Há sempre necessidade de um olhar que ama e corrige, que conhece e reconhece, que discerne e perdoa (cf. Lc 22, 61), como fez, e faz, Deus com cada um de nós.
2. «Uns aos outros»: o dom da reciprocidade.
O facto de sermos o «guarda» dos outros contrasta com uma mentalidade que, reduzindo a vida unicamente à dimensão terrena, deixa de a considerar na sua perspectiva escatológica e aceita qualquer opção moral em nome da liberdade individual. Uma sociedade como a actual pode tornar-se surda quer aos sofrimentos físicos, quer às exigências espirituais e morais da vida. Não deve ser assim na comunidade cristã! O apóstolo Paulo convida a procurar o que «leva à paz e à edificação mútua» (Rm 14, 19), favorecendo o «próximo no bem, em ordem à construção da comunidade» (Rm 15, 2), sem buscar «o próprio interesse, mas o do maior número, a fim de que eles sejam salvos» (1 Cor 10, 33). Esta recíproca correcção e exortação, em espírito de humildade e de amor, deve fazer parte da vida da comunidade cristã.
Os discípulos do Senhor, unidos a Cristo através da Eucaristia, vivem numa comunhão que os liga uns aos outros como membros de um só corpo. Isto significa que o outro me pertence: a sua vida, a sua salvação têm a ver com a minha vida e a minha salvação. Tocamos aqui um elemento muito profundo da comunhão: a nossa existência está ligada com a dos outros, quer no bem quer no mal; tanto o pecado como as obras de amor possuem também uma dimensão social. Na Igreja, corpo místico de Cristo, verifica-se esta reciprocidade: a comunidade não cessa de fazer penitência e implorar perdão para os pecados dos seus filhos, mas alegra-se contínua e jubilosamente também com os testemunhos de virtude e de amor que nela se manifestam. Que «os membros tenham a mesma solicitude uns para com os outros» (1 Cor 12, 25) – afirma São Paulo –, porque somos um e o mesmo corpo. O amor pelos irmãos, do qual é expressão a esmola – típica prática quaresmal, juntamente com a oração e o jejum – radica-se nesta pertença comum. Também com a preocupação concreta pelos mais pobres, pode cada cristão expressar a sua participação no único corpo que é a Igreja. E é também atenção aos outros na reciprocidade saber reconhecer o bem que o Senhor faz neles e agradecer com eles pelos prodígios da graça que Deus, bom e omnipotente, continua a realizar nos seus filhos. Quando um cristão vislumbra no outro a acção do Espírito Santo, não pode deixar de se alegrar e dar glória ao Pai celeste (cf. Mt 5, 16).
3. «Para nos estimularmos ao amor e às boas obras»: caminhar juntos na santidade.
Esta afirmação da Carta aos Hebreus (10, 24) impele-nos a considerar a vocação universal à santidade como o caminho constante na vida espiritual, a aspirar aos carismas mais elevados e a um amor cada vez mais alto e fecundo (cf. 1 Cor 12, 31 – 13, 13). A atenção recíproca tem como finalidade estimular-se, mutuamente, a um amor efectivo sempre maior, «como a luz da aurora, que cresce até ao romper do dia» (Prov 4, 18), à espera de viver o dia sem ocaso em Deus. O tempo, que nos é concedido na nossa vida, é precioso para descobrir e realizar as boas obras, no amor de Deus. Assim a própria Igreja cresce e se desenvolve para chegar à plena maturidade de Cristo (cf. Ef 4, 13). É nesta perspectiva dinâmica de crescimento que se situa a nossa exortação a estimular-nos reciprocamente para chegar à plenitude do amor e das boas obras.
Infelizmente, está sempre presente a tentação da tibieza, de sufocar o Espírito, da recusa de «pôr a render os talentos» que nos foram dados para bem nosso e dos outros (cf. Mt 25, 24-28). Todos recebemos riquezas espirituais ou materiais úteis para a realização do plano divino, para o bem da Igreja e para a nossa salvação pessoal (cf. Lc 12, 21; 1 Tm 6, 18). Os mestres espirituais lembram que, na vida de fé, quem não avança, recua. Queridos irmãos e irmãs, acolhamos o convite, sempre actual, para tendermos à «medida alta da vida cristã» (João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte, 31). A Igreja, na sua sabedoria, ao reconhecer e proclamar a bem-aventurança e a santidade de alguns cristãos exemplares, tem como finalidade também suscitar o desejo de imitar as suas virtudes. São Paulo exorta: «Adiantai-vos uns aos outros na mútua estima» (Rm 12, 10).
Que todos, à vista de um mundo que exige dos cristãos um renovado testemunho de amor e fidelidade ao Senhor, sintam a urgência de esforçar-se por adiantar no amor, no serviço e nas obras boas (cf. Heb 6, 10). Este apelo ressoa particularmente forte neste tempo santo de preparação para a Páscoa. Com votos de uma Quaresma santa e fecunda, confio-vos à intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria e, de coração, concedo a todos a Bênção Apostólica.
Vaticano, 3 de Novembro de 2011